Cuidado com a crônica

Um retângulo de papelão escrito Fome. Nem seis graus Celsius, quem abre a janela do carro à noite, no cruzamento da Cândido de Abreu com a Barão de Antonina, prum sujeito sem carnes, pardo, segurando uma placa chinfrim destas?  Nem a pau, num frio do djanho desses, Vai trabalhar!

Eu não trabalho!, grasna o Pelicano do Passeio Público de Curitiba.

A dois ou três ou quatro quarteirões desse sinaleiro neorrealista, o passarão — enorme, desengonçado, atrás do terreiro gradeado do parque — não orna ali, o visitante sofre uma cãibra cognitiva para enquadrar o bípede esquisito naquele paço bucólico familiar paranaense, Quem pôs esse bicho aqui?  Qual? Esse da placa fome beliscado pelos retrovisores dos Jeeps zero quilômetro desenhados para lacrarem nas vagas do Shopping mais velho da cidade?

E o pelicano? O visitante lembra do Albatroz, de Baudelaire, e começa jogar palitos de sorvete no passarão, que os engole sem piar, Indignação Geral, apela-se para as pedras, Vai-te daqui, esmera-se o transeunte! O Pelicano bate as asas colossais, mas não voa, Não sei como isso faz mais!  então corre para o curral dos roedores,  que o enxotam, Vai-te daqui, rilham, e nunca mais se viu o príncipe dos ares no jardim público criado para afogar o pântano plantado no centro de Curitiba, no século dezenove, foco de malária, Mosquitaiada dos Infernos! Acabou.

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Júlio César domina as ruas do Centro — non ducor, duco. Louco como Nero, acumulador de bugigangas, César fala coisa com coisa não, mas conduz o destino seu, como pode, como dá, um dia vende bala na praça Tiradentes (não levou uma na cara ainda), outro dia passeia na Amintas de Barros com um copo de cerveja de papelão sem derrubar uma gota sequer.  E pede algo, sempre, numa língua românica invulgar, que só ele entende só. E senta onde e quando quer, calçada, sarjeta, meio fio. ali mesmo arruma e se desarruma, abre e fecha seus saco de cacarecos, com a assistência social nada, foge, quer conversa não. E some, num flash.

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Locutor do defeito alheio, boca de balde, vizinhos, uns nos outros colados, xifópagos, odiando-se, amando-se; tem uma aqui no Pilarzinho, aluga quartos, pinta os muros da casa aos noventa anos, língua de trapo, quebrou braço e perna, mas já se levantou, quer mais um cacho de bananas, frutas solidárias que o vizinho bonzinho distribui na rua; menos pior que o velho novo morador que chegou chegando estorvando a tudo e a todos, largando tijolos na calçada, soltando uma matilha nas ruas, Mel, Rex e Fred, este um salsicha que morde tornozelos à vista na Rolf Faria Gugisch, essa rua rasgada num relevo impossível, calle em que o perro gourmet quase foi esmagado pelo pneu do pálio antediluviano dirigido pelo vizinho solidário; não matou, bicho saiu mais embutido mas  ileso;  parente é serpente, vizinho é espinho, na Rolf, rua polaca, onde moram uns catarinas, uns paulistas, um germano, e gente paranaense, só polonês tem não, ninguém com as fuças do pies louco Wojtyla caçador de comunistas que beijou a cruz dos podres de ricos e os anéis dos alcaides da cidade ecológica em mil novecentos e oitenta e nos jogou nesse brejo político-existencial no primeiro quartel do século vinte e um, mas isso é maldade do vizinho boca de balde que não para de falar, só tem um jeito de acabar com isso. Assim.

2 comentários em “Cuidado com a crônica

  1. O salsicha ficou mais embutido? Boa! rsrs. Vizinho é pepino mesmo. Se for barulhento, pepino azedo! Minha filha esteve recente em Atlanta e Denver, lá naquele agora paiseco, e ficou impressionada com a quantidade de homeless e quetais, nas ruas centrais. É, sistema decrépito… Abração!

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