Dezembro na área, o Natal mordendo-me o tornozelo, o Ano Novo afiando as unhas, tenho pouco tempo para prestar contas. Difícil começar, a garganta arranha, a voz engrola, a frase não embala, efeitos de um espirito temeroso em expor seu avesso ao sol, iluminar a coisa escura em praça pública. Processo nada instagramável, a propósito. Perdoe-me o tom grave, mas o fim de ano tem disso
Detesto Natal. Não exatamente a festa, muito menos o Peru, mas sim a fatia que essa efeméride meio religiosa meio comercial nos rouba, pelo menos quatro dias, entre compras, viagem e ceia. Parte do corpo quer se desligar de tudo que pareça com tarefa e obrigação, outra parte é agarrada por essas mesmas duas fúrias que o sequestram, a serviço do bom velhinho e do filho de Deus. Quando termina o Natal, o espectro do Ano novo avança com a seita das roupas brancas, dos fogos de artifício e espumantes. Dá nos nervos computar os dias perdidos de descanso. Quando relaxamos, ouvimos o clique do relógio de ponto.
Minha habilidade manual é ridícula. Uma embalagem mais complexa, um pacote mais rude, uma tomada menos acolhedora são o estopim de uma saraivada de impropérios que envergonharia a Dercy Gonçalves nos seus melhores dias. Quem ouve imagina que você está brigando com um vereador-influencer fascista ou gritando da janela do carro em frente a um acampamento de patriotas. Mas não. Trata-se apenas de colocar o pino da fonte do computador na miserável tomada da extensão sicofanta que, por algum mistério, tem um design nada empático ao intercurso mecânico entre dois entes elétricos. E tem os pacotes com fechos de embalagens a vácuo que nem um cirurgião do Sírio-Libanês é capaz de abri-los comme il faut. Só com dentes ou tesoura — e muito palavrão.
Sou sedentário. Alego, a meu favor, que fui levado a esse estado de imobilidade por causa do home office. Antes disso, ia trabalhar duas a três vezes por semana de bike. Não era um Tour de France, mas bastava para colocar o sangue pra circular mais rápido, o coração bombear mais ritmadamente e os alvéolos pulmonares espalharem mais oxigênio no sangue. Tudo isso ruiu como um sobrado do Rio das Pedras. Trabalhar em casa só faz cócegas ao cárdio, pois os dias se passam entre mesquinhas caminhadas do escritório ao banheiro, do banheiro ao escritório, deste à cozinha, desta ao escritório. Não é preciso ser um maratonista queniano para isso, um lutador de sumô aposentado daria conta desses nanopasseios. Não, não acordo duas horas mais cedo para malhar. Seria uma vantagem para você, pois fatalmente enterraria minhas horas “livres” para escrever.
Sou homem, coisa difícil de se desfazer. Venho tentando trocar o programa instalado há algumas décadas, criado para acreditarmos ser superiores às mulheres, nos envergonharmos do pênis pequeno ou nos vangloriarmos do contrário, jamais reconhecer estarmos errados, sempre nos acharmos o mais esperto, fingirmos ser um misto de Clint Eastwood com Wagner Moura apesar de arrastarmos o shape de um Marty Feldman e uma massa encefálica de um Rodrigo Constantino. Pior são os algoritmos que te levam à Roma dos machos magoados, sempre reclamando de tudo e de todas, ou ao palco dos conquistadores vorazes, onde se contam as mil e uma peripécias sexuais do espécime XY. Por isso, prefiro a companhia das mulheres. Como disse um homem — mais engraçado do que homem –: não frequento clubes que me aceitam como sócio. Antes que a leitora se canse e me casse, com razão, no fim das contas, não custa desejar boas festas para alguns e algumas e menos festas para outros e outras, e que em 2026 os macho se lasquem, e levem, se possível, o Natal e o Ano junto com eles.
* Imagem é um recorte do desenho de Leonilson para o texto Otimistas lutam contra Natal macambúzio, de Barbara Gancia (Caderno São Paulo 4/12/1991), extraída de Leonilson, José. Leonilson use, é lindo, eu garanto. 3a. ed. São Paulo: Cosac edições, 2025.
