Não culpem o urubu

Bem-vinda, Bem-vindo ao ano que não começou. No calendário juntaram-se quatro novos algarismos, mas eles mentem. Dois mil e vinte não acabou em primeiro de janeiro. Avançou a linha da folhinha gregoriana como uma bexiga elástica e medonha. Nesta segunda semana de fevereiro, ainda lhe sentimos o látex esticado e frio. Prova-o o único folião nas ruas livre para pintar e bordar nos sambódromos do país: o espinhado Sars-Cov-2.

Mas não nos desesperemos. Dois mil e vinte um vem vindo. A cada espetada de agulha, o ano que insiste em ficar esvazia-se. A cada vacina aplicada, sentimos o ar mais leve e assim alcançaremos o ano novo de verdade quem sabe em maio, quem sabe em junho. Otimista? Sim, pois otimista deve ser a primeira crônica do ano, embora primeira mesmo, na lata, batata mesmo, não seja, dado que 2021 não firmou ainda.

Enquanto testemunhamos a saraivada de picadas que fará 2020 rodopiar no ar até sumir de vez como faz todo bom e tradicional ano velho, agarremo-nos às boas histórias apanhadas em meio a asfixia geral. Dei com uma delas, da porca Gabriela, semana passada, num jornal carioca.

A simpática Gabriela escapou de virar churrasco no morro do Urubu, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Era a estrela da festa haja vista a generosa reunião de filés, costelas, lombos e pernis suínos que porta consigo. Mas quiseram as fadas e o fado dos morros cariocas que a caçamba que a levava para a grelha a despejasse na rua por desmazelo de seus condutores. Alguém prendera mal a portinhola da camionete e a porca conheceu a liberdade.

Urubu desenhado / Gratispng

Em meio às vielas onde circulam os 4 mil habitantes do morro do Urubu, a simpática mamífera desabou entre um punhado de gente boa, que a acolheu e a destinou a uma organização protetora dos animais. O jornal revela tocarem “Amada Amante” pra ela dormir. Decerto compreendeu que neste mundo desamante há gente que mantém acesa não a brasa da churrasqueira mas sim a chama do amor.

Descontem-se os nove mortos no mesmo morro pela polícia militar do estado do Rio de Janeiro uma semana antes do episódio da Gabriela. Com a desculpa de sempre (disputa de traficantes locais), essa instituição, chamada um dia de Corpo Militar de Polícia do Município Neutro, pôs fora deste mundo esquecido de deus uma novena de cidadãos que não tiveram uma portinhola mal travada para livrá-los do mal, amém. Ao contrário da afortunada porquinha, nenhuma das nove almas mereceu ser nomeada pela nota da antes intitulada Brigada Policial do Distrito Federal.

Perdoem-me por a crônica ter desandado. E não culpem o Urubu. Ele nada tem com isso. Não esqueçamos que ninguém voa como ele e que esse catartídeo tem visão invejável. Quem sabe ele já distinga 2021 adiante, e logo noticie estar esse ano desamante ficando para trás.

Sejamos amantíssimos este ano — o quanto pudermos –, caríssimas e caríssimos leitores.

11 comentários em “Não culpem o urubu

  1. Cheguei a sonhar aqui que os fados e as fadas do morro estavam acabando com o “espinhento”, com a polícia do Rio, com as portinholas mal travadas, e víamos o urubu anunciando 2021, ao som de amada amante.
    Excelente crônica, meu caro! Obrigada por lembrar.

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