Cacos de primavera

— Alô, perdi o celular, bloqueei o chip, como faço pra conseguir outro?

A conversa com a operadora de celular não começou assim, claro. Conseguir falar com uma pessoa humana gente de verdade em carne e osso vivinha da silva demora uma tabuada de dígitos. Mas deu bom. E fui premiado. Dia 31 outubro a voz do outro lado espraiava o perfume de um sotaque nordestino. Não era baiano, era um pouco mais agudo, nem tão ardido quanto o recifense, tive de perguntar: — De onde está falando? — Fortaleza. Era a Geanne ou Jeane, Agradeci de joelhos — Minha felicidade hoje devo a vocês. Ela riu, ela entendeu, não podia falar abertamente, eu sim. Disse-me que eu era o segundo Eugênio que ela conhecia na vida, o outro era de Paracuru onde havia nascido. Piscou uma amizade ali. Nem liguei pro frio, estava no modo primavera.

Gato atrás de esquilo. Esquilo arisco fuçando a semente. Gato se atira, esquilo salta pro topo da árvore. Gato lastiiiiima. Gralhas gritam, aterrissam no comedouro, travam a comida no bico rijo, exibem o lírico risco azul que lhes contorna os olhos. A mamangava assusta minha filha. Zumbe alto, expõe o belo ferrão, bate-se no vidro, conto que está em extinção. Picada dói, sim, mas passa. Poliniza o maracujá. Com a rede de borboleta a livro da armadilha involuntária. O zumbido vai junto e o silêncio assenta. A tarde verga-se sob o solzão vermelho, sente o arco da noite cuja antessala explode em vagalumes. Sarampo amarelo na mata do vizinho, estourada de mato por tanta chuva. O calor voltou a Curitiba. A primavera tira o atraso, enfim.

Nasci e morei quatro décadas em São Paulo. Há frio por lá também, o calor sopra dos cearenses, baianos, maranhenses, pernambucanos, piauienses, alagoanos… Levam alegria, sociabilidade e tirocínio aos paulistanos. E aí vai uma história entre tantas que mostra até onde o nordestino perfura a cidade de pedra. Era um lançamento de filme fotográfico da Fuji, final da década de 1980 ou inícios dos anos 90. Comida japonesa à vontade. Primavera gastronômica. Dois quiosques serviam sushi e niguir em pontos opostos do grande salão de um edifício na Vila Olímpia. Um japonês, outro brasileiro. Encosto no balcão nipônico, papo vem, papo vai, o sushiman confessa: — Quem me ensinou tudo foi o cearense ali, o dedo apontava o quiosque contrário. Pois é. Sem eles, São Paulo submergiria na garoa fria, sem primavera.

Um nada de nuvem no céu. Os gatos espapaçados no jardim. Os manjericões soltam flores e carimbam o ar quente com seu perfume. O abacateiro avança vertical, as folhagens rasteiras cercam as bromélias e aceleram sobre a rampa de cimento. Os jacus gritam, os tucanos reapareceram. Uma força estranha navega esse dia. Na rua, gente colorida se beija. Há um nordeste no centro cívico da capital paranaense. Ainda que aos barrancos e trancos, a primavera se firma.

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