Coração quente

Um dos poucos versos que decorei na vida foram de Garcia Lorca. Meu coração teria a forma de um sapato se cada aldeia tivesse uma sereia e há barcos que precisam ser olhados para afundarem-se tranquilos. Eu os lia num livro da década de 1980, de título estranho, Romanceiro Gitano, reunião de vários poemas do poeta andaluz. Esquisito também o título do poema, “A lua e panorama dos insetos”. Tenho o exemplar até hoje, perdeu a contracapa, conserva um par de páginas amassadas.

Há quase quarenta anos, com esse livro e mais uns versos na cabeça saí pela noite paulistana e depois de bater muita perna e beber bem, parei no semáforo da avenida Santo Amaro com a rua São Sebastião, perto da estátua do Borba Gato. E comecei a declamar ou gritar o poema dos insetos. Livro na mão — Se o ar sopra brandamente, meu coração tem a forma de uma menina — livro no chão — se o ar se nega a sair dos canaviais, meu coração tem a forma de uma milenária bosta de touro –– livro na mão de novo, e assim ia. E pra não parecer disco riscado, mandava uns outros poucos versos que memorizara mal e porcamente. O começo de uma das Elegias de Duino (Quem entre as legiões dos anjos me ouviria?), de Rilke, e uns fragmentos do Paranoia (sou uma solidão nua amarrada a um poste), do Roberto Piva. E a lua! A lua! Mas não a lua, a raposa das tabernas.

Os poemas se misturavam aos sons e à fumaça dos escapamentos e eram replicados por uns “vai tomá no cu!”, “sai da rua, filho da puta!” e afins. Mesmo de madrugada a Avenida Santo Amaro não parava. Empolgado e esticando o elástico da tardoadolescência, acabei tirando a blusa — vogar, vogar, vogar — e o resto — a nudez que amassa o sangue de todos!. Segui declamando mais um pouco, “vai dormir, desgraçado!”, acabei me aborrecendo, catei as coisas do chão e fui embora: Esta inocente dor de pólvora nos meus olhos!

A um quarteirão de casa, ainda sem calças, chegou a polícia. O famigerado fusca vermelho e preto. “Vai colocando a roupa aí, vagabundo”, ouvi enquanto levava duas pancadas de cassetete na bunda. Era véspera das eleições de 1985, para prefeito, não podia ser preso. Me deram um sermão naquela língua chulo-bacharelesca deles, e segui pra casa. — E a lua com um guante de fumaça sentada à porta de seus entulhos. A lua!! No dia seguinte votei sentindo as duas cassetadas no traseiro.

Hoje, cinco de junho, faz cento e vinte cinco anos que Federico Garcia Lorca nasceu. Há quase noventa anos foi covardemente assassinado por fascistas na região de Granada, na Espanha. Lorca tinha voltado de Nova York há pouco tempo, cidade onde escreveu o “Lua e o panorama dos insetos”. Seu corpo não foi encontrado ainda, sinal da brutalidade e covardia do Estado espanhol. Mas não falemos dessa gente, sigamos com versos de outro poema seu:

Não viste pelo ar transparente

uma dália de penas e alegrias

que te mandou meu coração quente?


* Imagem: Monumento a Garcia Lorca, de Flávio de Carvalho. Versos finais estão no livro Sonetos do amor obscuro e DIvã do Tamarit (Mediafashion, 2012), traduzidos por William Agel de Mello.

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