Mapa incidental

Marginal Tietê

— Se o senhor ganhasse na loteria, faria o quê?

Mal terminou a pergunta, esterçou o volante, mudando de pista. O táxi saltava de uma faixa pra outra como um gato, despertando a marginal Tietê às seis da manhã. Antes de chegarmos na Vila Madalena, conheci as artimanhas do mundo financeiro. Ex-gerente de banco, o taxista me ensinava a ganhar o dinheiro que ele não ganhou.

Avenida Jaime Reis

— A Quilmes tem uma baita história!

Entusiasmada, a proprietária do La Coya exaltava a cerveja argentina. Os quilmes resistiram aos incas, mas foram massacrados pelos espanhóis no século XVII e obrigados a sair da região de Tucumán e andar mil quilômetros até se fixarem ao sul de Buenos Aires, onde deram ao nome da cidade que produz a cerveja desde 1888. O La Coya entrou em campo lugar do Hornero, bar xeneise, o primeiro a hablar español no quarteirão das ruínas da Jaime Reis.

— La Coya tinha o mesmo poder do imperador inca — ouvi já na calçada.

Praça 29 de março

— O Cícero é que levou os livros!

O poeta que segundo Otto Maria Carpeaux definiu o caráter do literato no Ocidente reencarnou no chefe da fiscalização de rua de Curitiba. Quem teve os volumes apreendidos foi Richel, livreiro nômade. Pedala uma magrela cargueiro com brochuras da literatura local e universal, as expõe e as vende pelas praças da cidade. Richel contou que sempre o ameaçavam, mas nunca tinham chegado as vias de fato, como nesse dia na praça 29 de março. Escoltados pelo robocops da Goe, braço violento da guarda municipal local, os fiscais embalaram os livros nômades em dois sacos plásticos, condenando-os a um sedentarismo involuntário em alguma prateleira empoeirada da Secretaria da Fazenda municipal. Quanto ao Cícero, Engels, o chamava de o canalha mais desprezível da história, fica a sugestão.

Praça Osório

— Me paga um corote?

Marcelo soltou essa depois de me defender do estressado vendedor de pinhão da Feira de Inverno da praça Osório. Conversa vai, Marcelo me disse que foi pra rua depois da mulher trocá-lo por outro. Quinze anos juntos, se conheceram numa casa de recuperação, dessas voltadas para reabilitação de dependentes de algum alterador da consciência. Trabalhava como eletricista, tinha um enteado, o ciúme o jogou na rua, por quem hoje se diz seduzido. Sem dinheiro vivo, Marcelo me guiou pelas ruas em volta da praça até encontrar um caixa automático. Dei uma nota pra ele, me agradeceu num pé e com o outro sumiu numa travessa da Visconde de Nácar.

Rua Cândido Lopes

— O que você tem? — perguntei

Esquálido, com uma máscara de cirurgião azul clara no rosto, Alan respondeu:

— Esquecimento.


* Joaquín Torres-García, Mapa Invertido da América do Sul, tinta sobre papel, 1944.

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