Próxima Estação

O rímel escurece e avoluma os cílios. Um pincel os estica em gestos secos e compassados. O celular flutua em frente ao rosto, serve de espelho à passageira ao lado, às seis da manhã na linha amarela do metrô. Veste um tailleur funcional cinza, passa dos trinta, distante um tanto dos quarenta. Finalizada a maquiagem, guarda os petrechos em um estojo, encosta a cabeça na janela da composição, relaxa as pálpebras antes atentas ao balé do pincel. Pronta para o trabalho, mendiga mais uns minutos de sono.

No banco à esquerda, um senhor de óculos veste um casaco de moletom verde e branco do Palmeiras. Os mais de cinquenta anos arranham-lhe a pele do rosto. Quase a sua frente, com duas bolachas cinzas grudadas nas orelhas, um rapaz rosado cobre-se da canela ao pescoço com um agasalho azul grafite do Paris Saint-Germain. As pálpebras deixam um fio de conjuntiva visível, ele ouve algo pelas bolachas que o isolam do corridão da maior cidade do país. Fora da ordem patriarcal, giletes penduradas nos lóbulos da orelha de um garote oscilam no ar circunspecto do vagão. Tatuagens parecidas com grafites de Keit Haring passeiam pelo seu rosto, rasurando o mosaico de passageiros indiferentes às estações que passam.

No fundo do vagão, uma menina gesticula com staccatos e legatos o pincel rechonchudo que aos poucos altera seu tom de pele. Depois de mover o pescoço para os dois lados em frente ao celular, coloca o utensílio em um estojo e tira um lápis corretivo. Concentrada, desenha um fio preto em volta dos olhos sem borrá-los. Obra acabada, guarda o instrumento na caixa — Próxima estação: Paulista — e fura a porta do vagão em direção à plataforma, surda aos meus aplausos mentais.

O palmeirense dorme com o pescoço inclinado para trás, abrindo levemente os lábios. Não ronca. Homens e mulheres em pé mexem-se menos que manequins, engessando o espaço com o cansaço que lhes governa ombros e braços. Silêncio e imobilidade prestes a romper-se, como se a chama de um pavio fora do vagão estivesse vindo para despertar-nos todos. Às cinco e quinze da manhã, acima dos túneis do metrô, São Paulo os aguarda para colocá-la em movimento — servir pastéis, atender chamados, aplicar agulhas, varrer o chão, cozinhar-assar-fritar carnes, carregar sacos de cimento, esfregar o chão, arrumar a fiação, ligar a internet. Uma explosão engatilhada no ar.

A luz da rua Fradique Coutinho contrai-me as pupilas. Na calçada entre a Pinheiros e a Artur Azevedo uma pequena fila contorna dois tabuleiros. Paro e conto várias garrafas térmicas, pratos de plásticos com bolos, pães. Uma moça vai servindo café, pingado, pão, bolos, para o povo que não tomou a primeira refeição em casa. Outra recolhe o dinheiro. Não paro, difícil conversar a essa hora. Vou em frente carregado de perguntas, quem são?, o que fazem?, onde trabalham?, quanto ganham?. A que horas as vendedoras de café levantam da cama?

A mochila trazida de Curitiba pesa nas costas. Quase na porta do prédio da minha mãe, vejo a kombi da VaniDog estacionada. Recém-pintada, vermelha e amarela, parecendo um carrinho de bombeiros, estampa o slogan “O Dog dos Sonhos” na carroceria. Não atende a essa hora, só trabalha à noite, começa entre seis e sete horas, quando abastece o estômago vazio dos baladeiros e notívagos da Vila Madalena até o finzinho da madrugada. Vani deve estar sonhando agora, depois de tirar a maquiagem e desabar na cama.

2 comentários em “Próxima Estação

  1. Muito bom Genão!

    Pena nao termos nos encontrado na livraria da Vila

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    Bia 

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