Contei pra ele o que ia no Negroni.
— Não sabia!
Um minitonel metálico de quarenta centímetros de altura por vinte de diâmetro guardava o coquetel ao lado do caixa na pequena e movimentada pizzaria da Fradique Coutinho, em São Paulo. O valor da dose, quinze reais, era anunciado na superfície do tonelzinho por uma caneta piloto. Achei barato, daí essa conversa
Era drinque pronto. O atendente, vinte e uns trocados a mais de idade, me apontou a garrafa na estante no fundo do corredor. De lá vinha a bebida que enchia o cilindro, ele acrescentava fatias secas de laranja ao servi-la. Os quinze reais estavam explicados.
— Olha: gin, martini seco e Campari.
Com a garrafa na mão, mostrei pra ele o rótulo, onde estava a composição da bebida. Em geral, cobra-se mais de trinta reais por uma dose, um pouco menos, vai da alma argentária que o comercializa. O garoto aprovou a lição etílico-comercial, me agradeceu e me cobrou o pedaço de pizza emendando um sorriso no outro
— Caraca.
Soltou rápido e baixo o atendente, enquanto puxava as fatias de mortadela da balança. Foi para o fundo da charcutaria do Festval onde ficava o fatiador de frios. Calculara mal. Parecia novo ali, três dias, uma semana? Reencaixou a peça do embutido na máquina, ajeitou o boné que lhe sobrava no crânio recém-saído da adolescência, e descarnou mais uns gramas da peça. De volta, apertou os olhos para enxergar o código da mercadoria impresso em letras miúdas ao lado do balcão, repôs as fatias na balança e me encarou apreensivo. “Está bom”, eu disse. Embrulhou a mortadela e me entregou. Não era rápido para os padrões do supermercado curitibano, seu olhar dizia. Queria lhe fazer umas perguntas, mas uma fila fervia atrás de mim. Coloquei os frios no carrinho vazio de respostas.
— Um cappuccino gelado, por favor.
A frase flutuou no quadrilátero do Café 217 naquela tarde quente. A voz adolescente deslizou pelo ar, sem rasgar a película de oxigênio onde pousava seu pedido. Um timbre entre tímido e superior. Um tom de voz de quem não corta mortadela ou vende negroni na noite paulistana, entre a culpa e o privilégio. A garçonete saiu da sala para comandar o pedido, girando o penteado azul e rosa na minha frente. Olhei para o cappuccino que esquentava à minha frente e engoli a voz.
— Hoje me entendo com a mãe.
Juntes, dois piás e duas gurias não somavam cem anos de idade. Narravam lances para driblar os pais, um levava o namorido para o apartamento dos pais quando não estavam, outra ia pra casa da namorida porque na sua a barra pesava. Riam, entendi que essas estratégias eram coisa do passado. Naquela mesa bamba do bar da Trajano Reis, no centro de Curitiba, pareciam felizes, o emprego dava para o chopp em dobro da promoção, alguém falou em bolsa de estudos, programavam uma viagem a dinheiro contado pra Matinhos.
Paguei o chopp e os espetinhos, hora de ir embora, uma amiga da minha geração comemorava aniversário duas quadras dali. Antes de chegar um menino me oferece bala ou doce na calçada
– Estou atrás de um cigarro solto, eu disse.
Ignorou minha resposta. Calei e segui. O que lhe diria mais? Desci mais uma quadra, as vozes e os rostos dessa meninada percutiam na calçada. Quem os maltrata merece nada. Pegá-los no colo. Não há como. Paro sentimental, do colarinho aos pés, à porta do Wonka Bar.
* Cruzamento da Trajano Reis com a 13 de maio, Curitiba. Foto minha.
