Vergonha

“Desculpa de aleijado é muleta”. Cresci ouvindo (e falando) essa expressão. Era corrente na década de 1970, em São Paulo. Adultos e crianças a espalhavam, sem culpa. Um bando de Rogers do Ultraje a Rigor com a lingua solta. Havia muita gente de muleta nos faróis e nas calçadas atrás de esmola. Uns andavam com uma perna da calça dobrada até o meio da coxa, outros com uma perna mais fina e curta, parecendo um ponteiro das horas bambo — amputação, paralisia infantil e outros males. Na maioria, rebentos da falta de proteção no trabalho e nas ruas. Pra piorar, uma reprovação moral os parafusava na miséria.

Via às vezes uma japonesa caminhar com o filho com Síndrome de Down na rua São Sebastião, em Santo Amaro. A gente os chamava de “mongoloides”. A maioria ficava confinada em casa. Esse menino andava sempre mal vestido, olhos apagados, ombros murchos, era a tristeza marchando na calçada. Na tevê, assistíamos às reportagens de hospícios e manicômios, um monte de gente jogada pelos cantos, boa parte pelada, ou maltrapilha, maioria preta, muita mulher. Comiam e bebiam em canecas de latas, um cadeião onde se atiravam miseráveis sem amparo algum.

Nessa Disneylândia hedionda que era a década de setenta e oitenta havia trapezistas e homens aranha. Os primeiros balançavam em plataformas de madeira do alto de prédios em construção. Não caíam poucos operários dali, segundo o artigo Ciganos da Construção, de Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva: “a cada doze minutos um operário morria ou ficava ferido [aleijado?] na construção civil no estado de São Paulo”. Eu os via pendurados, oscilando no ar, enquanto assentavam tijolos ou rebocavam e pintavam paredes. Se equilibravam em uma tábua retangular, mal ajambrada, amarrada a cordas, que passavam por roldanas, que convergiam para uma corda amarrada no ponto mais alto da edificação. No meio do piso, havia uma engenhoca de ferro com uma alavanca conectada a uma engrenagem, com a qual os operários elevavam ou abaixavam a tábua ao acionaram continuamente a alavanca. Fazia um som de uma matraca, dava pra ouvir lá debaixo. Na rua, eram chamados de “baianos”, palavra que virou xingamento, completando a exploração por que passavam os milhares de pernambucanos, alagoanos, sergipanos, potiguares, maranhenses, piauienses, paraibanos e cearenses que chegavam a São Paulo pra trabalhar muito e ganhar pouco.

Os homens aranha eram os que lutavam para não cair dos ônibus em movimento. Entrava-se por trás naquela época. Quando lotava, a porta não fechava, os passageiros ficavam pra fora, com um pé no degrau e uma das mãos agarrada a um puta-que-pariu qualquer. Quando não dava pra socar mais ninguém, o motorista não parava mais nos pontos, passando como uma bala pela faixa da esquerda com todos aqueles trabalhadores pendurados atrás. Não achei estatística sobre acidentes desse tipo, mas acontecia. Fico imaginando o trabalhador explicando o atraso do trabalho por causa do transporte público e a resposta do patrão — Desculpa de aleijado é muleta.

Era uma Beto Carrero dos horrores. Já se vão cinquenta anos. Essas lembranças vieram depois de sair da exposição de Arthur Bispo do Rosário aqui em Curitiba. Gênio por décadas fechado em pinéis, criou uma das mais belas obras da arte visual brasileira. Apareceu pro mundo na década de 1980, em uma exposição no MAM do Rio de Janeiro. Sergipano, foi jogado no parque diversões capitalista, sobreviveu bordando uma resposta que tanto nos ilumina quanto nos envergonha e humilha.


* Obra de Arthur Bispo do Rosário exposta em Sonoridades (MON, Curitiba, 2023). Foto minha.

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