Terça-feira gorda

Do nada, um passista fora de época desfila pela praça Santos Dumont em direção à rua Ébano Pereira. Sem camisa, enrolado num vaporoso tecido de cetim, requebra os quadris sujos para a estátua do aviador nacional. No rastro dele, espoca outra ala. Três mulheres de hijabs azuis despencam da Ébano Pereira em bicicletas alugadas. Mal freiam ao cruzarem a Saldanha Marinho. Pedalam na contramão, sem dar bola para as viaturas da PM estacionadas no quarteirão. Ou não sabem andar ou penam para entender a linguagem das ruas de Curitiba. Saem de cena em zigue-zague, zerando o improvisado Sambódromo dessa terça-feira julina. O cliente da livraria-café da esquina esfrega os olhos e pede um espresso lungo — Sem purpurina, por favor.

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Terno e gravata, calças cinturadas. Uma porcaria de cabelos brancos grudada na calva. No saguão do aeroporto, ergue levemente os quadris. Ninguém ouve o gás que viaja-lhe o delgado, o grosso e encontra a biosfera. O ruído metálico do celular de um caixeiro viajante neoliberal abafa-lhe o som. Uma idosa empurrada na cadeira de rodas gira o pescoço para o careca flatulento. Uma faísca senil os conecta. Corpos contra o decoro. Uma bandeirinha alçada na lateral da cadeira volante associa a velha a uma grande empresa área nacional. Um colaborador da aviação, ao relho da lei, a arrasta para o portão de embarque. Alguém a vê erguer as ancas, discreta.

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Leio na internete que “Fradique Coutinho praticou barbaridades espantosas”. Não sabem-se quais, a web não informa. Nascido nos Quinhentos, bandeirante alçado a nome de rua, bem não fez, o Fradique, só pra si, talvez. A rua com seu nome na VIla Madalena é de morte. Degolam-se ali o silêncio, o pedestre avoado, o comerciante ingênuo, evoluem o barulho, o estilhaço, os empreendedores deserdados. Tabuleiros com cigarros e doces, pendurados em pescoços magros e pardos, descem e sobem as vias enfezadas de corpos, metal e ruídos. Grita-se a noite toda, um véu de desejos furados. “Fradique Coutinho praticou barbaridades”, como não foram poucas, por supuesto, o chapChat ajuntou esse “espantosas”. Bárbaro.

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Bate o frio nas pernas de sabiá. De moletom e bermuda, o velho caça bebida barata na Fradique Coutinho. Na Tabacaria, tem double drink, ele lembra. Quase é riscado da Vila Madalena pela moto do aifude — à noite o farol vermelho é verde, double verde. Para e assiste ao gol do São Paulo contra o Goiás na televisão gigante do Pasquim. Confuso, isso era um tabloide carioca, virou bar? Dois barrigudinhos carecas e uma loira oxigenada gritam gool nessa terça-feira paulistana. Hoje tem futebol? Segue confuso, sem perder o passo de sabiá. Cobre a cabeça com o capuz do moleton protegendo-se do vento gelado. O cheiro de maconha é familiar. — Quero um double drinque, pede para a caixa da Tabacaria. “O riso destrói”, lê na página suja enquanto a bebida não vem.


* Hélio Oiticica desfila na Mangueira (Rio de Janeiro, 1960) - Projeto Hélio Oiticica/Divulgação.

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