Fantasia n.1

A luz de led corre nos paralelepípedos úmidos da rua São Francisco. Um frio que não é frio confunde as pessoas que circulam pelo Centro de Curitiba na terça-feira à noite. Umas de casaco, outras de camiseta, cavam espaços entre o povo em situação de rua que ocupa a cidade à medida que a noite avança. Um deles, o Alysson, me para:

— Pode me dar uma informação?

A palavra “informação” me deixa na dúvida. Abaixo a cabeça e peço para ele repetir. Isso mesmo, Alysson precisa saber algo. Ele me pede para contar o dinheiro que comprime na mão direita. Brotam dali uma nota de dois reais, uma moeda de um e mais setenta centavos em moedas.

— Preciso de seis reais, ele diz.

Pergunto pra quê, um remédio, responde. Faltam uns dois reais, digo a ele. Puxo uma nota de cinco que encontro afundada na carteira. Ele me agradece:

— Pedi um cavalo, você me deu um unicórnio!

Alysson é baixo, tem o braço esquerdo atrofiado. Ele diz que o atropelaram na Santa Quitéria. Correu para atravessar a avenida Presidente Artur Bernardes para mijar no canteiro central e um carro o pegou. Ele voou e bateu a cabeça na sarjeta. Com clareza e fala mansa, relata que parte do cérebro direito teve de ser removida — tira o boné e curva levemente o pescoço pra baixo –, por isso perdeu os movimentos do lado esquerdo. Quando esfria, ele explica, o lado atrofiado dói muito.

— Mas estou vivo, não reclamo, isso é bom.

Alysson sobe em direção ao obelisco da Barão do Serro Azul, decerto caminhará até a praça Tiradentes onde há farmácias abertas a essa hora. Sigo São Francisco abaixo.

— Dá um gole, moço?

Paro e estendo o braço direito com o copo de cerveja pra ela. Com um piercing no nariz e na sobrancelha direita, os cabelos pretos presos em um penteado que não esconde alguns fios brancos, Luciana sorri, bebe um pouco e oferece para a loira e corpulenta Mariana, que apanha o copo, muda. Elas vêm da Riachuelo com a Antonio Bufren onde estavam à espera de fregueses. Luciana conta que não gostam de fazer ponto, preferem ficar cada dia em um lugar. Mariana quer ir embora, Luciana ancorou na minha IPA. Antes que um conflito se estabeleça, resgato o que sobrou da minha bebida e me despeço do par, que agora segue pacificado a mesma trilha do Alysson.

Desço até a Riachuelo, dobro à direita e logo viro à esquerda na Alfredo Bufren rumo ao Baba Salim, em frente ao Teatro Guaíra. No caminho, passo por uma catadora de latinha, que fuça o lixo junto ao meio fio, cantando o hit da década de 90: “Vou pegar o primeiro avião, com destino à felicidade”. Minhas pernas, em conluio com meu estômago, me afastam dela, chega de conversa por hoje, agora é hora de comer as esfihas no Baba, há mais de quatro mil pessoas em situação de rua em Curitiba. Eu sei, eu sei, murmuro, enquanto unicórnios dançam ao som de “Pense em mim” na minha cabeça.

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