A revista 451 de São Paulo publicou a lista dos melhores livros de 2024. Não vou citar as obras selecionadas, nem polemizar sobre as escolhas. Se puder, dê um pulo no site deles e espie quem levou as medalhas bibliográficas do ano. Só vou comentar a respeito de um que deveria estar nesta e em outras listas. É obra anônima, com título bruto: Gente que quero socar a cara.
Dei com sua existência no balcão do restaurante Tijolo, em Curitiba, o que combinou com a catadura do livro, grosso, título escrito em letras vermelhas e capa dura. Sem ficha catalográfica, prefácio ou sumário, o Socar na cara é só folhas em branco, franqueadas a qualquer um que queira preenchê-las a caneta ou lápis de todos os calibres, vazando cada um a seu modo a bile que o djanho lhes deu. O volume que pude folhear já é o segundo da série, ainda volto lá para escarafunchar o primeiro.
E por que reivindico um lugar ao sol nas listas dos melhores livros para essa obra? Pense o quanto um Dostoiévski, um Lima Barreto, um Kafka esticaram o literário pescoço para escutarem o que cariocas, russos e russas, chécos e chécas andavam falando sobre os sentimentos mais inconfessáveis. O que nao dariam por um exemplar desses largado numa taberna em São Petersburgo, num boteco no Méier, numa cervejaria em Praga?
Mas um leitor diria: “Hoje temos os comentários nas redes sociais”. Verdade, mas o livro tem a vantagem de registrar a bronca pelo tempo que o papel aguentar, a vantagem do anonimato, tanto do autor quanto do leitor, livres do GPS e localizadores eletrônicos, e a melhor vantagem de todas: nos oferecer só o que está em suas páginas, sem luzes piscando, sons apitando, janelas apelando para serem abertas, todo esse aparato digital criado para nos acorrentar ao mundo virtual.
Noves fora as bordoadas em políticos nacionais e locais, há muita coisa boa ali. A bronca é democrática. Sobra pra professora de Teoria da Sociologia, pra secretária de síndico, pro ex-namorado tóxico, e pra muita gente cujos nomes foram expostos em grafias erráticas, finas, grossas, em maiúsculas, circuladas por setas, cruzes, estrelas, compondo um mosaico variadíssimo da raiva humana. Destaco dois socos. O primeiro é um comentário de uma esposa espinafrando o marido por sua falta de atenção e respeito durante o jantar a dois ali, no próprio Tijolo. Vejo-a entrar no restaurante, flagrar o livro no balcão, sentar-se na mesa com o esposo deselegante, levantar-se quarenta minutos depois — “Vou ao banheiro” –, parar no balcão e lavrar sua indignaçao matrimonial no Socar a cara antes de voltar e terminar a refeição e aquela noite vazia. O outro reproduzo como está no livro: “Sou contra a violência, mas gostaria de socar a cara daqueles que não acreditam em Jesus Cristo”. Não sei o que comentar sobre esse cristão ou cristã, sei que sintetiza bem boa parte das práticas religiosas das quais andamos nos esquivando por aí.
Talvez seja o caso de o Socar tornar-se hors concours, e a cada cinco anos publicarem uma coletânea das melhores bordoadas escritas nesse período. Não seria um Irmãos Karamazov, nem uma Triste fim de Policarpo Quaresma, menos ainda um Processo, mas, perdoe-me a devota ou devoto acima, daria uma boa Bíblia dos nossos desacertos.

Muito bom Genius!BjosBia
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