ao neoliberalismo, que nos mói sem trégua
Do Pilarzinho até o Aeroporto em São José dos Pinhais, Claudinei narrou-me seu amor (seletivo) ao cinema. Só gosta de filmes históricos ou de vampiro. Se superproduzidos, melhor. À medida que a conversa se desenrolava, notava que estava diante de um amador profissional. Amador, porque nos dias de semana Claudinei é motorista da linha de ônibus conhecida como Ligeirinho em Curitiba e nos fins de semana dirige aplicativos, portanto não janta nem almoça à custa de sua cinefilia; profissional, pois é bamba no assunto, sabe muito sobre esses subgêneros cinematográficos.
Achei oportuno a corrida ter sido na parte da manhã, dissipando qualquer possibilidade de Claudinei reencarnar o conde romeno nas pistas da Avenidas das Torres. Criticou algumas produções, detestou um filme em que Drácula saiu de um caixão na forma de um enorme morcego e matou quase toda a tripulação do navio que o transportava da Transilvânia para Paris, se não me engano. Quer distância da série Crepúsculo e de filmes em que vampiros saem mordendo e sugando sangue adoidado. Recomendou um em que o vampiro dos Balcãs foi intimado a ajudar os romenos a enfrentarem o império otomano. No final da viagem, o uber Clau me passou o número de um vendedor de TV Box, esses aparelhos que vampirizam todas as plataformas de streaming disponíveis no país. Ele tem um, falou maravilhas dele– só de pensar em ter centenas de opções de filmes, séries, vídeos, tevês, senti uma vertigem, como se estivessem aspirando todos meus glóbulos vermelhos.
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Meu pai me dá um forte abraço. Ele diz — e o reforça por olhares e gestos — que não está bem. Moço, parece estar com quarenta anos ou menos, como nas fotos guardadas no apartamento da minha mãe em São Paulo. Chegou sem avisar, de terno, bem desalinhado — algo incomum pra ele. Não é um almofadinha, mas não é de se descuidar da imagem. Neste encontro, tenho sessenta e dois anos. Pergunto o que ele tem, está visivelmente perturbado, nunca o tinha visto assim. Fala apenas comigo e um outro convidado da festa ou reunião, da qual eu desconheço a motivação e o anfitrião. O abraço foi apertado, de um modo que jamais fizéramos antes. Nos encaramos, ele se despede e desaparece pelo mesmo corredor do qual surgiu.
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Agarra-se às grades do portão de ferro. — A bola, a bola! — Não, vó, não tem bola nenhuma aí! A vó repete e dá mais dois passos de lado, como alguém andando num precipício. A neta lhe diz algo, ela consente e retorna como um caranguejo para a porta lateral e entra em casa. A neta sorri melancolicamente para mim, antes de fechar o portão. Mais à frente, na mesma calçada da Luis Anhala, na VIla Madalena, uma idosa bem agasalhada, de cabelos branquíssimos, toma sol, presa a uma cadeira de rodas. A cuidadora ou parente rola o feed do celular sentada a seu lado, num quintal apertado, revestido de porcelanato branco. Um sol velho custa a espantar o frio da manhã.
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Sabrina Sato oferece um xampu impermeabilizante aos passageiros. Os cabelos preenchem a pequena tela embutida no encosto da poltrona da frente, os fios formam uma onda de plástico prestes a pular pra fora do monitor. Como não consigo desligar o aparelho, viro o rosto para o lado e vejo um piá ruivo encostando a cabeça em um travesseiro em formato de um biscoito mordido . O voo não dura quarenta minutos, o pescoço deve ser frágil ou o biscoito almofadado é very comfortable. O embarque em Congonhas atrasou uma hora, chegaremos à meia noite em Curitiba. Estamos todos cansados, menos a Sabrina Sato, que de tempos em tempos volta para o monitor espalhando os cabelos à prova d’água.

Sensacional!!!
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grato, Maristela! Juntemos os pedaços que nos restam!! Forte abraço
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