A rua respira de novo. Meio abafada pelas máscaras, meio arranhada pelos olhares assustados dos passantes, ela reaprende seu idioma e recupera a alma encantadora, como escreveu o cronista carioca.
Retomei, então, minhas andanças pela cidade e dei com canelas, tornozelos e calcanhares na Travessa Tobias de Macedo, no centro de Curitiba. Procurava um acessório para uma cafeteira italiana. Torcia para a Louças Tobias, loja tocada por libaneses (ou sírios?), estar de portas abertas. Estava, e aventurei-me entre panelas de pressão, frigideiras, formas de bolo, vasilhas, copos e taças, garfos e facas, saca-rolhas, raladores de queijo e o graal doméstico que eu buscava: borracha pro filtro da cafeteira. Demanda atendida, pus meus calcanhares na rua novamente.
Se a loja de louças seguia heroicamente aberta, o mesmo não ocorria com o Hotel Mandarin e o boteco Gold Bar, estabelecimentos espetados na calçada oposta. O hotel ainda mantém, inconformados, letreiro e toldo azul. Nem o nome anglicizado — o n em vez do m no final — o salvou da pandemia. O boteco vizinho largou os bets e escancara um toldo cariado. Mais à esquerda, um antigo edifício amarelo estica-se até o fim do quarteirão, na rua Riachuelo, enfileirando sete ou oito portas cerradas, arrematando o obituário comercial da margem direita da Travessa Tobias.
Mas na Alfredo Bufren, via que continua a Tobias, o ar era outro. Os dois hotéis do quarteirão, o Curitibano e o Cervantes, estavam funcionando, assim como a Casa do Pai João, todos na mesma calçada. Na margem oposta, um cristalino letreiro verde-ouro organiza o olhar dos passantes. Mesmo sob o sol acanhado desta primavera fria, as letras contam, elegantes, que abaixo delas move-se a Casa de Couros Schlenker. Apesar das portas fechadas pouco antes das 17h, apurei que os Schlenker não haviam pendurado as chuteiras comerciais. Nesse dia, talvez, prestassem solidariedade às lojas do quarteirão anterior que sucumbiram ao tranco trazido pela covid-19.
Apurei também que o fundador da Casa de Couros, Harved João Schlenker, havia sido pintor. Informação extraída de um precioso obituário escrito pelo José Carlos Fernandes, em 2015. Deslizando pelas frases sem-tirar-nem-pôr do José Carlos, soube que o comerciante de couros frequentava o ateliê do Alfredo Andersen (hoje transformado em museu aqui em Curitiba), tinha sido vizinho do pintor Miguel Bakun, e retratava paisagens, sua adoração. Se isso não bastasse, Janske Niemann Schlenker, a esposa, é poeta e frequentava o círculo de Helena Kolody.
Dei meia-volta e subi a Riachuelo. Tomei um pingado no Rause, café recém-transplantado do Batel para o Centro. Sentado no balcão junto à calçada, uma mistura de dândi com piá de prédio anunciou, depois de convidado a ganhar 50 mil reais por um vendedor de bilhete de loteria, que acabara de torrar 20 mil reais que mamãe lhe dera vinte quatro horas antes. Passei meu pix pra ele, sugerindo-lhe rever seu planejamento financeiro. Quando iniciou uma conversa sobre a escolha de Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras, piquei a mula, como se dizia no ano da fundação da ABL.
Subi a rua São Francisco e acabei conhecendo o antigo ateliê de Renato Tod, escultor do famigerado Cavalo Babão do Largo da Ordem, um chafariz cuja água jorra da bocarra de uma cabeça de cavalo de bronze. No lugar do ateliê, há lojas, cafés, restaurante e uma galeria de arte unidos por um simpático beco. Das antigas pedras do piso sobe uma energia renovada. Sangue nos olhos em um tudo por ali, garçons, galeristas, barwomen, baristas, ciclistas aguardam o santo graal da pós- pandemia. Amém.
Sair de casa com temor ao cruzar olhares; justo eu, toda dada.
Acessórios de cozinha e copa que exalam odores característicos, misturados aos aromas do centro da cidade…
Quanto ao cheiro do café – do Rause nunca tomei, mas – nem se fala.
Excelente, mestre.
Como sempre. ❤
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Vamos lá no Rause dias desses, o primeiro café é por minha conta. Grato pelo carinho!
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Vai ser uma put@ honra!
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