Um cronista perdido numa noite limpa

A São Francisco deslizava metálica até a Presidente Farias. Fachadas, asfalto, luminárias e calçadas trocavam os reflexos que caíam-lhes da lua cheia. Aqui e ali, humanos cortavam esses sinais, vagando pela rua vazia. Poucos bares ligados, o veterano Joker era um dos raros que abrira as portas nesse sábado prateado. Camaleão, bar calouro, pelo menos pra mim, iniciava os trabalhos àquela hora, às dez, juntando uma meia dúzia de gente colorida na porta. Antes da pandemia essa rua fervia, nesta noite flutuava em banho-maria. Talvez mais tarde a temperatura subisse, mas não saberemos, pois dei meia-volta em direção ao Largo da Ordem.

Cruzei o obelisco da Serro Azul, segui pela Nestor de Castro e entrei no largo pelo terminal de ônibus. Antes registrei o varejo do crack, do pó e da maconha. Mantinha-se positivo operante, como há dois anos. Uma piazada talhada no boné, short, corrente e tatuagens agitava-se entre os painéis e coberturas de ônibus. Eu não distinguia muito bem cliente de brother, nem uber de carro procurando bala pra turbinar a diversão. Ninguém me ofereceu nada. Devia tá com cara de policial à paisana ou de tiozinho crente. Aposto na primeira hipótese, pois uma calça rosa torneava minhas coxas pré-sexagenárias, figurino bem próprio de P2. Achei prudente me mandar dali.

Entrei no largo. Receberam-me os bares, que equilibravam mesas e clientes sobre os paralelepípedos anterrepublicanos. No centro, solene, cintilava o bebedouro dos tropeiros. Virando à esquerda, rumo ao largo da Igreja do Rosário, o fervo começava. A ladeira, àquela hora, espreme-se e um corredor irregular ladeado pelas mesas de restaurantes e botecos. Meio à sanfona, comprime-se e descomprime-se conforme a sanha dos estabelecimentos do lugar. Mas ao chegar ao topo, na praça Garibaldi, somem as mesas, e o petit-pavê é do povo.

Povo variado, povo jovem, povo das quebradas, gurizada divertindo-se ao ar livre. Uma eletricidade liga aquela meninada de cabelos pintados, tatuagens no braço, no rosto e nas pernas, energiza-lhes a imaginação na hora de tirar e sobrepor camisetas, shorts, blusas, saias, moletons, fora os tênis com formas e cores que escarnecem dos velhos bambas e congas do meu tempo. Na escadaria da polêmica Igreja do Rosário, uma moçada mandava ver no funk, descendo até o chão, conectando todas as tribos sem a espada do conservadorismo sobre suas cabecinhas em flor. À frente, desenrolava-se um vaivém incessante de pernas e corpos, ritmado pelas paradas junto aos assentos improvisados nas bordas da fonte do cavalo babão. Corre, rolê, brisa, cola aqui, cola ali, os novos sentidos da língua vão fecundando-se nessa algaravia jovem e feliz.

Do outro lado do templo, atravessando a Trajano, vi que a antiga padaria apertada onde eu descolava uma folha de Estar e um pão de queijo antes de encarar meus alunos às oito da manhã saiu de cena e em seu lugar entrou um bar amodernado, Pata Negra. Não sei se tem parentesco com o restaurante de mesmo nome no Batel. Não averiguei, mas notei que a linguagem é outra. No Batel, o estilo era meio hiperbólico, apressado em mostrar as origens espanholas a ponto de meter uma foto do Franco numa parede perdida; essa versão do largo é clean, sem paredes, só balcão e mesas, estilo neoliberal — baixo custo acima de tudo.

Deixei o largo pra trás e segui, rumo às ruinas, pensando no Fidel. Não o comandante cubano, mas o bar da Jaime Reis. Costeei uma galeria de arte, restaurantes, a hamburgueria local tão famosa quanto desprezível, um boteco argentino e caí na Folia. Ou melhor, no Folia, bar que tomou o lugar do Fidel. Uma multidão na calçada, fazendo jus ao nome do boteco, me fez recuar. Dei meia volta de novo, atravessei a rua e liguei o modo voltar pra casa. Lá do alto, a lua arriscava um poema nos pedriscos das ruínas da praça João Cândido.


* Foto extraída da página do Brasil de Fato/Melito Fotofolia.

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