Crônicas instagramáveis

Ao perguntar se eu era cliente, pedir meu CPF, a caixa deixou escorregar aquele “s” levemente chiado, doce, que me fez perguntar se ela era de Belém. “Nao, sou do Amapá”, falou, abrindo levemente as vogais. A deliciosa prosódia do paraense, e agora do amapaense, lima o s chiadissimo do carioca e acalma a vogal estridente do pernambucano. O outro caixa me desafiou a adivinhar de onde era seu sotaque. Errei. Acreano de Marechal Taumaturgo, ele explicou que falam um erre meio engolido. Não conhecia. Muito jovens, entoam uma pequena melodia amazônica na última livraria do Calçadão da XV.

Da janela do banheiro masculino da Biblioteca Pública, na Cândido Lopes, dá pra ver um quintal espremido entre prédios. Nele brigam Espanha e Holanda. Tubulações de ar-condicionado, grades, escadas, desenham uma planilha corrosiva no quadrilátero cansado. Duas engenhocas brancas brotam como dois enormes dentes no piso vermelho. Plantas avançam vindas dos canteiros laterais aproveitando-se do abandono geral e da chuva que caiu em Curitiba nos últimos meses. Espaço alimentador de uma máquina maior. Pilha urbana saída de um filme do Tarkovski.

Bola e Graziela são parceiros na magreza. Com um pé no chão outro num chinelo velho, Bola conta que esteve preso no Mato Grosso e não sabe como chegou em Curitiba. “No Bairro Alto”, diz, “tem outro Bola”. Nem por isso ele não é o Bola. “Sou Bola também”, repete. Saber que há outra pessoa com mesmo apelido dele, Bola, incomoda-o. Furo esse looping e descubro-lhe o nome, Darlán, enquanto descemos a Desembargador Ermelino Leão em direção ao calçadão da XV.

A fome roeu as feições da Graziela. “Não vou fazer programa mais”, fala enquanto despeja moedas na mesa do Boutique da Cerveja. Finas tatuagens no rosto e pescoço contam uma história. Me cumprimenta forte com as mãos, umas três vezes, recolhe as moedas. “Não vou fazer programa mais!” As palavras machucam sua boca -“Não vou fazer programa mais!” , repete mais uma vez antes de se apagar na Praça Santos de Andrade.

“Devo de ir, fada, insetos voam em cego sem direção” reconheço os versos do Luiz Melodia enquanto espero o pão com bolinho pra viagem. A dupla num pequeno palco do bar Folia manda outro Melodia, e depois bota o bloco na rua, de Sérgio Sampaio. Despudoradamente jovens, tocam uma playlist do meu tempo. No bar, casais conversam e se acariciam nas mesas, outros flertam nas calçadas. Aplaudo feliz os dois guris, que retribuem com olhos agradecidos. Chegam os pães, esvazio o copo e, passo a passo, sigo para alegre Jaime Reis onde estacionei meu corcel 73.


* Foto: Visão dos fundos da Biblioteca Pública do Paraná/Foto minha.

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