Autobiografia em seis parágrafos

Esta é última crônica antes dos sessenta. O passe de idoso, as filas e os estacionamentos preferenciais crescem no horizonte. Antes de alcançar esses privilégios da velhice, melhor olhar pra trás e fazer um acerto de contas com os anos que se foram.

Aos vinte, circulava pela PUC de São Paulo. Mais pelo lado de fora, pelos festivos quarteirões que a abraçavam, do que pelas salas de aula. Isso me custou milhares de neurônios, dissolvidos em barris de rabos-de-galo. Na PUC sabia-se, como não conheci nem testemunhei em lugar algum, combinar festa com política: jornais, greves, assembleias semana-sim, semana-não, discussões entre anarquistas, stalinistas, trotskistas sem hematomas no fim, e a campanha extraordinária das Diretas Já, tudo sob uma névoa de cannabis, copos de cerveja e som na caixa. Me formei nisso, para o que não havia diploma.

Aos trinta, virei camelô. Fui vender livros à noite, na rua, na esquina da Consolação com a Avenida Paulista. Foi a década do trabalho informal. Mais gente ralando na rua do que acumulando FGTS. Quinzena sim, quinzena não, pau da polícia nos ambulantes. Vendiam de tudo, artistas da viração. Veio a Erundina, prefeita, tentou dar jeito e dignidade naquilo. Só tomou pau, não da polícia, mas da imprensa. Com um sócio e o dinheiro das ruas, montei o Sebo Paulista, na Consolação. De segunda a segunda, funcionava até às duas da manhã, depois até à meia-noite, às dez, até quebrar, batendo as botas comerciais sob os desarranjos do Plano Real e das privatizações. Formei meu ponto de vista nisso: nem livros sem rua, nem rua sem livros. Nada de diploma também.

Aos quarenta, era pai, recém-casado, e revisor de texto. Me formei em Letras na USP, pra onde corri depois que o Sebo faliu. Os neurônios que me restaram pelejavam para acompanhar as aulas de primeira linha, as quais, agora sim, frequentava como devia. Eram anos de crise, nas salas dos calouros às vezes espremiam-se quase duzentos alunos, um formigueiro acadêmico — e quem se sentava nele eram os professores, que só viram as coisas melhorar no começo deste milênio quando abriram-se concursos para novos docentes. Emendei no doutorado. Demorei pra me entender como pai, rearranjar a receita, algo que só se acertou quase uma década à frente, em Curitiba, por obra e graça da Adriana, mulher inteligente que tive a sorte de conhecer e me casar.

— Quero voltar pra São Paulo!, esse era o mantra da Aurora, desde que chegou em Curitiba. Apanhei bastante no início, menos pela cidade, mais pelos meus fantasmas. Quando aprendi a domá-los, estava capturado pela capital mais gelada do país, cidade generosa e fácil de circular. Nela me tornei professor na beirada da primeira década deste século, algo que tinha rascunhado em São Paulo, mas desistido. Depois de morar em três bairros diferentes, ancorei no Pilarzinho, de onde vai ser difícil sair. Mas não minha filha, que foi tocar a vida em Sao Paulo, combinando palavra à ação, com coragem e pra orgulho dos pais.

E na capital paranaense saí da gaveta, escrevendo e publicando estas crônicas. Deu até um livro, Rua! Crônicas de reclusão e reencontro, que o leitor pode encontrar, com sorte, em algumas casas do ramo ou na onipresente internet. Sexagenário, prometo não encher meus textos com achaques e desventuras decrépitas, muito comum entre cronistas dessa idade. Prefiro xingar a choramingar, cantar a reclamar dos flagelos físicos. Minhas piores fraquezas são as do espírito, não as do corpo, o qual, diga-se, merece um diploma pelo tanto que eu o maltratei.


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